Breath of the Wild e o luto
Ou como um jogo virou o refúgio e conversou com o luto da perda dos meus pais
Perdi meu pai em 2020. Hoje faz três anos que isso aconteceu. De todos os lugares, recorri a The Legend of Zelda: Breath of the Wild como refúgio durante um luto confuso, sem ritual de despedida e sem muito tempo para se fazer entender. Foi nesse momento que o jogo fez ainda mais sentido e abriu um canal de comunicação comigo em seu conteúdo. Estou há três anos tentando escrever uma sequência de palavras explicando o porquê de sequer ter começado a escrever até agora. Desde então, perdi também um irmão e minha mãe, continuei sem escrever nada a respeito, embora o jogo estivesse fazendo cada vez mais sentido a medida em que os dias passavam e as coisas aconteciam. Isso porque Breath of the Wild fala de viver em um mundo devastado, de reconstruir memórias, vivências e a esperança a partir de escombros sem nunca deixar de sentir a dor que causou tudo isso.
É possível que eu esteja ladeando o texto em si para evitar cutucar no luto enquanto, ao mesmo tempo, parece fazer parte dele explicar como esteve pronto na minha cabeça por três anos e mesmo assim nunca aconteceu. Eu ainda não tinha terminado Breath of the Wild quando meu pai morreu. Na verdade, enrolei para não terminá-lo porque era bom demais para ter um fim, o que pode parecer um contrassenso para quem jogou, porque esse jogo nunca acaba de fato. Você vai continuar explorando, descobrindo e encontrando novas formas de conhecer, experimentar e viver naquele mundo mesmo sem objetivo nenhum. Na verdade, o que descobri após terminar é que, uma vez que acaba BoTW, você inventa novos objetivos para o jogo continuar fazendo sentido e seguir existindo no seu dia a dia, porque não quer que aquilo acabe, que aquele mundo deixe de existir. De qualquer forma, a perda do meu pai conectou meu luto com o jogo e me fez encontrar relações entre o que eu sentia jogando e o que sentia vivendo. Então o primeiro obstáculo imposto a este texto foi o de terminar Breath of the Wild.
Mas quando tememos o resultado de algo, o que não falta são maneiras de evitar que isso aconteça. Nós sempre criamos desculpas diferentes para evitar a ansiedade causada pelo fim de algo que queremos fazer, mas tememos terminar. Quando terminei o jogo depois da apoteose que é escalar os andares e atravessar os corredores do castelo de Hyrule, após sobreviver às formas do Calamity Ganon e de confiar na força e velocidade da égua que tinha capturado ali pela metade da jornada e que virou minha melhor amiga, o jogo ressoou comigo de uma maneira que precisei de tempo para absorver.
Vi recentemente em algum lugar um vídeo se debruçando sobre o silêncio na Hyrule desse jogo. Os Zeldas anteriores sempre foram preenchidos por uma trilha sonora deliciosa onde quer que você como jogador levasse o Link. Em BotW, o silêncio impera na maior parte do mapa a menos que esteja correndo a cavalo, quando o jogo faz uma referência tocante ao próprio legado em uma versão rearranjada de uma música já bastante conhecida. Esse foi um dos cliques que me fizeram sentar na frente do teclado e voltar a escrever alguma coisa sobre esse processo. Porque esse é um dos casos nos quais o silêncio diz muito mais do que a música. Você está explorando uma terra destruída há centenas de anos, para onde olha o horizonte é delineado por escombros e vestígios de um mundo que já existiu e do qual, durante boa parte do jogo, só Link se recorda de como foi. Você, no controle dele, não tem acesso ao que se passa dentro da cabeça do personagem, que também não se manifesta com palavras. O silêncio, algumas vezes rompido só pelo ritmo dos passos do protagonista ou o trotar do seu cavalo, é a solenidade que conecta o emocional de Link em contato com um mundo que não é mais dele, mas no qual ele se vê vivendo e, pior, pelo qual ele se enxerga como responsável. Quando você teve uma relação próxima com seus pais, é exatamente o que sente quando perde ambos. Você está dando os primeiros passos em um mundo novo, mas muito familiar, que parece um pouco esquisito, um pouco mais vazio, completamente inexplorado.
Em Breath of the Wild, a natureza já cumpriu seu papel de ocupar um mundo desocupado pelo desastre de cem anos atrás. Então a grama se espalha por todos os lados, só sendo impedida pelo próprio mundo natural. Os vestígios de civilização são poucos e isolados, pequenos povoados tentando resistir enquanto o mal encarnado e o próprio ciclo natural das coisas se impõem contra eles. Ao mesmo tempo, nem a natureza e nem esse mal foram capazes de impôr o esquecimento a alguns vestígios de um passado anterior mesmo a Link. O mundo conta uma história de séculos, milênios, de outros desastres anteriores que apontam para aqueles que ainda virão. O tempo não espera a dor cicatrizar, por mais que ele mesmo adore exibir suas próprias cicatrizes.
A rotina é a morada do luto. No meu caso, mora em não acordar mais com meu pai deixando o café da manhã pronto, com uma mensagem da minha mãe perguntando que horas ia almoçar na casa dela, nas músicas que aprendi a ouvir com meu irmão quase que por osmose. Está no microcosmo da existência que era acompanhar meu pai numa ida à feira, com picuinhas que existiam apenas entre ele e um dos feirantes que tinha sido mal-educado com ele e as provocações divertidas dele com o outro que tinha aumentado o preço da batata. Está também na minha mãe trazendo uma sacola vazia sempre que vinha em casa, só para colocar ela sobre a mesa e ver a gata correndo e enfiando-se lá dentro, acontecendo na forma de uma coreografia desajeitada que se repetia todas as vezes, sem falta. Para quem jogou outros jogos da série, temos um pouco disso nos encontros com nomes conhecidos que, tanto para nós quanto para o Link, envolvem um momento de remoer e reviver o passado, realocando-os em seus papéis definidos na memória do jogador e do Herói do Tempo. Tudo em Hyrule está diferente, mas se comporta igual de uma forma estranha, só deles, uma rotina do que parece só ter sentido os efeitos do tempo por fora. E é aí que a música volta, é nesses pequenos lugares de rotina e memórias que escutamos a trilha do jogo se manifestando. É onde há vida e pessoas, nesses lugares de memória e de cura. É quando, no luto, a rotina vai se transformando em lembranças calorosas e em sensações que solapam a tristeza para que o choro forçando a saída seja de alegria, não mais de dor. Ainda que a dor vá permanecer e se reservar para os momentos em que você se lembrar de que nenhuma daquelas pessoas estão mais lá, de que agora depende só de você não esquecer dos rostos, das vozes e das risadas, que de alguma forma estarão todas registradas em você de alguma forma. Eu estou cada vez mais rindo como minha mãe e resmungando como meu pai.
Tudo no jogo conversa com a perda e as memórias de alguma forma, seja como as já mencionadas cicatrizes de lembranças recentes, seja com o legado esquecido tornando-se presente outra vez. As shrines funcionam como uma conexão direta entre a Hyrule atual e a de quando os deuses ainda viviam entre os mortais, elas também servem como uma espécie de mensagem ao Link e os jogadores no controle dele: não há pressa em uma jornada que precisa de tempo, não há a necessidade de correr para salvar o mundo se você não estiver preparado para salvá-lo, não há a necessidade de pular as etapas da dor quando você pode contemplá-las. Sentir a dor e o processo são tão importantes quanto vivê-los. O objetivo está sempre chamando por Link no mesmo grau em que o ameaça, então não há nada que você faça nesse jogo que não te lembre a razão pela qual você faz. Em Breath of the Wild, o mal já venceu, já dominou tudo o que poderia dominar e dorme satisfeito, então quem quer que o desafie também não precisa ter pressa.
Em algum ponto de Moby Dick, você vai perceber que os primeiros capítulos do livro foram preparativos para o que estava por vir, você pode até tentar desafiar a baleia branca que é a leitura desse livro sem eles, pode até vencê-la, mas não vai desfrutar disso da mesma forma se não tivesse passado por todo aquele começo, sem acompanhar a jornada de Ismael e Queequeg atrás de um propósito que sequer era deles, sem entrar no turbilhão de caos que é a mente do Capitão Ahab, sem atravessar oceanos atrás de um leviatã que pode muito bem ser uma lenda, mas que, se não for, pode acabar com sua vida. Desde seus primeiros passos no platô de Hyrule, Link pode ir de peito aberto até o castelo e, quem sabe, derrotar o Calamity Ganon. Mas sem tudo o que ele viveu durante o processo pelo qual passou ao escolher se fortalecer antes disso, o objetivo perde um pouco do valor. Link não sabe mais por quem está lutando quando o jogo começa, exceto, claro, pela princesa Zelda. Mas é o processo de descobrir, aos poucos, que o mundo defendido por ele não se resume a ela que torna a jornada ainda mais significativa. E eu não sei como isso pode se encaixar no meu processo de luto que no momento assemelha-se mais a Sísifo e sua pedra do que a qualquer outra coisa. Mas gosto de pensar nisso como um recado, algo que eu posso tirar para mim e para tudo o que tenho passado: é no caminho que as memórias estão, correr em uma direção sem se permitir desviar do caminho por elas é tentar enterrar algo que vai para sempre fazer parte de mim.
Que texto bonito, querido. ❤️